A persistência do leitor

2.1.21

Isto não interessa a ninguém.

É sábado, passam quarenta minutos exactos das oito da tarde, está a chegar aquilo a que em televisão, num dia de trabalho, e em horário nocturno, costumamos designar por pausa para jantar. Talvez tenha acabado de meter  o pé na argola na regência do verbo designar, talvez fosse melhor fazer esta ressalva entre parêntesis, provavelmente faria melhor figura com um dicionário à mão, talvez esteja a abusar da vírgulas e a desviar-me do tema que me trouxe aqui: ainda bem que há imprensa e pessoas que a fazem e cultura. É a Fran Lebowitz e o Scorcese, o Anthony Bourdain, a Jeannette Winterson, o Eric Vuillard, o Moses Sumney, a corrupção financeira e intelectual, o compadrio, o filhismo, o fascismo ao virar da esquina, os pensadores, o estouro da cultura, e claro, a política estúpido, todos numa sanduíche de papel em cima de uma caótica mesa de trabalho, uma montanha de jornais e revistas que ainda se escrevem e ainda são comprados, para levar, ou “take-away” como se diz agora em português, para a mesa de jantar e fazer uma das cinco melhores coisas do mundo: ler.


muito rapidamente...

21.12.20

1 - O café. Ocupamos o balcão vazio do café. Havia pessoas em todas as mesas exteriores, à excepção de uma, assim como em todas as mesas interiores, à excepção de outra, mas pediram para não nos sentarmos lá. 


2 - A viagem do microfone. 

O microfone atrasou-se. A chuva atrasou-o, dois condutores atrasaram-no, um acidente atrasou uma pequena parte do mundo, a parte entre Matosinhos e Braga. O universo e os problemas das suas vírgulas ao volante. 


3 - Deram-nos quinhentos metros para correr na zona industrial de Canelas, uma zona de passeios apertados, repleta de carros estacionados e de carros dispostos a estacionar, visitada regularmente, a todas as horas, por camiões de grande porte, e nós, os primeiros a concluir a tarefa, corremos os quinhentos metros em dois minutos. O homem é um animal lento. 

Para além dos quinhentos metros também nos tinham dado cinco minutos para os concluir. Engatámos, nos três minutos de descanso, alcançados pela nossa velocidade, outros cinco minutos para setenta e cinco repetições de um exercício chamado power snatch  (aqui a missão ficou aquém do desafio, com apenas cinquenta e cinco repetições). Mas não foram necessários todos os cinco minutos da última proposta. Deu, com maior ou menor esforço (maior), para fazer os cinquenta burpees em quatro minutos e trinta segundos.



retrovisor

8.12.20

A história da farmácia, que já tem algum tempo, repetiu-se durante várias deslocações, separada por intervalos de tempo consideráveis, e tendo como epílogo, invariavelmente, o fracasso de uma intenção (no caso em apreço, o simples acto de aviar uma receita médica). Na altura foram falhas importantíssimas - e com certeza o foram - porque os remédios eram mesmo necessários, mas, em retrospectiva, essa importância toda encolhe-se, reduz-se, porque, e por exemplo, não me recordo do nome de nenhum medicamento, em falta ou prontamente aviado. O conceito de importância tem ramificações diversas, completares ou ímpares, e uma delas é o tempo.



Novembro

8.12.20

Novembro foi, há seis ou sete anos, um livro sem fim à vista. Corria uma quantidade incontrolável de ilusão nas veias. Todos os dias usavam raios de sol e falavam com entusiasmo sobre qualquer assunto: de pneus de bicicleta, do reflexo das manhãs na chávena de café, do tamanho desmesurado do optimismo (sem medir consequências).

a notícia da morte de jan Morris

8.12.20

O obituário de Jan Morris ocupa uma página inteira do Times e três quartos de outra. Na primeira confluem como habitualmente texto e fotografias, um casal tão habituado à sua vida conjugal que por vezes nem se fala. Não é caso. Uma Jan Morris mais próxima da idade da sua morte domina a paginação, antecedida por uma de menores dimensões que data de uma das suas primeira aparições públicas depois da cirurgia efectuada em Marrocos para a mudança sexo, decorria o ano de 1972. A última imagem é do tempo de James Morris, retrata o grande furo jornalístico da sua carreira, publicado em 1953 na manhã da coroação da rainha Isabel II, em 1952. James acompanhou Edmund Hillary e Sherpa Tenzig Norgay, na primeira vez em que o homem conquistou o Everest.  O El País titula, a propósito dela: “Morre aos 94 anos Jan Morris, a viajante que chegou até ela própria”.

árvores de Portugal

8.12.20

E hoje é hoje, está no começo, a ver vamos. 

A árvore portuguesa de 2021 é o plátano do Rossio de Portalegre, uma árvore com 182 anos e que vai representar Portugal no concurso “Árvore Europeia do Ano 2021”. A notícia ocupa a totalidade da página 34 do jornal Público de hoje., 27 de novembro de 2020. Escreveu-se que o plátano, plantado em 1838, guarda muitas memórias da cidade. José Maria Grande, médico e botânico, plantou-o. Um dos clubes de Portalegre, o Sport Clube Estrela, foi fundado debaixo do plátano. Tem 23 metros de altura, sete de perímetro de tronco e 37 de diâmetro de copa. O tratamento e poda é efectuado por uma equipa da Fundação de Serralves. Sucede ao Sobreiro Assobiador da aldeia de Águas de Moura (concelho de Palmela), eleito em 2018, e à Azinheira Secular do Monte do Barbeiro (concelho de Mértola), escolhida em 2019 e que fiquei em terceiro lugar do concurso europeu. A fasquia está elevada para o Plátano do Rossio de Portalegre.

verlaine e Gainsbourg

8.12.20

Un jour n´importe quand, Verlaine escreveu antes de tudo, a música. E se a memória estiver realmente alinhada com o tempo, num outro dia qualquer Gainsbourg escreveu numa canção o nome de Verlaine e cantou-a. Isto no fundo é uma cenoura. Motivação versus inércia.

Coisas que podiam ser assobiadas (2)

25.11.20

Um saco do Continente a tiracolo, dois sacos de plástico na mão esquerda, a carteira e um derradeiro saco de compras na mão direita. Mais detalhe menos detalhe,  uma empregada de limpeza do aeroporto do Porto chegou ao local de trabalho. “Deve vir aí alguém importante”, disse, no único momento de incontinência verbal, ao passar pelos polícias de serviço, e deve ter-lhe custado imenso conter-se, mas estavam ali demasiadas câmaras de televisão, tripés, jornalistas e até máquinas fotográficas, e ela tinha de comportar-se. De resto, nem bom dia, nem boa tarde. 

Boa tarde teria sido mais apropriado. 

A voz redireccionou a nossa atenção. Passámos, em vez do horizonte, a olhar o lado do aeroporto, encostados ao posto de sentinela. Umas calças de fato de treino escuras, provavelmente cinzentas, uma grossa camisola de lã cor de rosa, um penteado oleoso pousado na linha dos ombros, uma passada rude, um corpo pesado e baixo. Posto isto a nossa concentração profissional regressou à procedência quando as sirenes das motas da polícia se anunciaram. O autocarro do FC Porto apareceu de imediato. Certas tardes preparam-se, sobem ao palco, executam o seu número de ilusionismo, desaparecem. Magia pura.    


Coisas que podiam ser assobiadas (1)

23.11.20

Um dia o J. chegou a casa e a casa tinha ido ao supermercado. Ficou triste. Espantado. 

No lugar da casa havia agora um imenso espaço vazio. Só o jardim continuava no sítio. Bem, na verdade a lavandaria, a biblioteca e a garagem também continuavam no sítio. Quem  percebeu que a casa tinha ido ao supermercado foi o bisavó. Ela chama-se M. J. e tem oitenta e oito anos. O J. ficou muito curioso. A bisavó ficou cheia de vontade de partilhar com ele tudo o que tinha visto. Era inacreditável, disse-nos. 

A casa fartou-se de estar sozinha durante o dia. Pegou na chave do carro, colocou um casaco pelos ombros, calçou umas botas muito grandes e lá foi ela. O chão até abanou.  


Fresca

26.8.20

 Não sei se posso comericar sem levar com um balde de rancor pelas costas a baixo ou ofender profundamente os indignautas, mas a verdade é que ontem pela noitinha comeriquei como se não houvesse hoje. Pão de água muito bem esquartejado, queijo barato, cereais de baixo teor calórico cuja embalagem só lhe faltou dizer que o cereal foi ao ginásio, melão talhado em figura geométrica desconhecida, e , não menos importante, exigindo a mesa improvisada e tardia vinho ou cerveja, só porque me apeteceu, beberiquei água cor de goiaba e toranja. Fresca

Weekend Affair

25.8.20

Telefonaram-me de Matosinhos. O carro seguia numa das autoestradas que divergem do litoral para o interior. Para trás ficaram cidades como Famalicão, Braga, Barcelos, Ponte de Lima, que apenas serpenteámos. O asfalto não as chega a esventrar, só as torna mais rápidas e acaba onde o mandaram acabar. Isso normalmente acontece numa caixa registadora instalada no fim da linha, a alguns quilómetros do destino. Contando comigo éramos dois dentro do carro. Continuamos a somar quilómetros e dentro cada um desses quilómetros conversámos sobre vários assuntos: experiências de trabalho, óculos de leitura, lentes progressivas, peripécias verificadas no estádio da Luz antes final da Liga dos Campeões no domingo, ontem portanto. 

Por mais rápida que uma autoestrada ponha uma cidade, há sempre a possibilidade de lá chegarmos atrasados, especialmente se nos atrasarmos. E de facto, neste caso, chegamos atrasados, mas o atraso não nos penalizou. Para o propósito da nossa viagem chegámos a tempo, apesar termos comparecido no local combinado com vinte minutos em cima da hora marcada. 

À noite encontrei um disco de 2015 dentro de uma arca cheia de discos e de filmes. É uma colectânea de uma revista francesa especializada em música. Tirar o disco do plástico que o envolvia deu algum trabalho. Tem catorze músicas, catorze personalidades sonoras (e não só) diferentes. Stuck no Land é uma música extraída do disco Welcome To Your Fate de uma banda francesa chamada Weekend Affair.   

Arcozelo, Islândia

18.10.19
O outono regressou e agora a música do Olafur Arnalds está outra vez afinada. Consigo ver pelo postigo do escritório o maravilhoso penteado afro da tangerineira no jardim, algumas árvores chamam por mim, e nesta aprecio violinos e pianos calmíssimos quando pára de chover. Entretenho-me com a sinfonia das gotas de água na folhagem, os movimentos súbitos e as quedas, os comportamentos sedentários.
Estamos todos cinzentos: a capa do livro de jornalismo, o céu, a minha camisola e o seu carapuço, a música, a reportagem dos incêndios num televisor sem som, a almofada do sofá, a secretária, os pés da cadeira, os meus pés, a capa do suplemento cultural, a primeira página do jornal e a temperatura. Mas o verde é mais verde em tudo e mais do que tudo na relva, o outro livro em lista de espera ficou absolutamente alaranjado. A luz de outubro não faz grandes discursos, mas está atenta a todos os pormenores e deixa-os brilhar.
Tenho uma árvore no jardim. Quase não há árvores na Islândia. Num velho ditado pré-reflorestação, contado aos turistas em jeito de anedota, eles costumam dizer: “se virem na Islândia três árvores juntas, estão a ver uma floresta”. Faltam-me duas árvores para ter uma floresta. 

Algumas anotações corporais:

15.10.19
a) dores expansivas na planta dos pés. Afinal prolongam-se. Após uma conclusão inicial e errónea, percebo, sobem pelo lado interior, dão a volta ao osso do dedo maior, parecido com um pequeno tornozelo, já agora, e descem pela beira dos dedos, espalham a dor a descer, é tudo muito rápido, conseguem ver melhor o que estou a dizer se conseguirem recordar qualquer excerto de filme com montanhas russas, percebemos melhor o que queremos dizer ao dizermos descer, pois então a dor empola e expira, como um pulmão a pulmonar, talvez mais forte, como se batessem dois corações nos pés, e doem; b) as pálpebras não se aguentam em pé, a retina a esta hora é feita de vidro laminado, e o vidro nunca se deu muito bem com a pele, o vidro nunca se deu muito bem com ninguém durante séculos, tirando as janelas, mas com tempo aprendeu a fazer garrafas e a ajudar automóveis e telefones, mas o problemas do vidro é que o vidro é de vidro e parte, tirando isso nada contra ele e até muito obrigado por tudo, mesmo se me risca a pele das pálpebras; c) o invisível crescimento dos pelos das pernas voltou a aparecer, vejo pequenos riscos negros, chuva miúda de uma banda desenhada, um pouco por toda a parte e tento compreender se o invisível crescimento da relva do jardim é comparável, tento no fundo perceber qual dos dois tem maior velocidade de ponta, mas depois penso melhor, sinto que levei o meu tempo livre a um stand de automóveis e saio dali a todo o gás, quando digo dali, digo daquele pensamento; d) um ligeiro formigueiro na barriga das pernas, mas nada de significativo; e) procuro cafeína para relacionamento breve.

Leio dois

15.10.19
livros a duas velocidades, um faz cem anos no próximo ano, o outro fez agora trinta e cinco, leio muito mais devagar, e seguramente com muito mais atenção, o primeiro e um pouco mais a correr o segundo, porque o primeiro há-de continuar por cá a acolchoar não só próximas leituras, como também o meu estudo vagabundo do ofício, mas não é tudo: o primeiro tem o tempo inteiro lá escrito.  O segundo é muito bom seguramente, e um belo narrador do seu tempo com certeza, e de leitura sem escavações, mas o outro, que terá cada vez menos leitores à medida que os séculos se apresentem ao serviço, é uma inesgotável fonte de conhecimento na relação entre o homem e a palavra.

COMEÇOU A SER

15.10.19
colocada a hipótese de irmos a Braga no sábado à tarde ao balcão do restaurante de um centro empresarial no Porto. Almoçamos bacalhau com broa. As empregadas de mesa trouxeram diversos  jarros de vinho branco para a mesa, a conversa fluiu cristalina e entremeada por segmentos hilariantes de passado, atada por fortes laços de amizade, reconstruiu-se ali à beira dos guardanapos de pano e dos pratinhos com palitos uma década caída em desuso, as goivas dos entalhadores, apareceram dedos sapateiros furados de vez em quando pelas agulhas deeeeste tamanho a mostrarem as feridas de guerra, também vieram a lume algumas notícias com defeito fabricadas em jornalismo tosco. Impunha-se um bom café e um bom café começa no aroma e termina na cobertura espessa. A hipótese então, colocou-a ao balcão já em tempo de despedidas um dos mais novos antigos pugilistas deste encontro anual. A sua esteira propunha uma visita ao ginásio do bairro onde mora e procura disseminar, com luvas, comportamentos exemplares em contextos difíceis. Três dias mais tarde a história viajou pela primeira vez de máquina de filmar. Trouxemos connosco umas boas duas de horas de gravação. Entretanto anoitecera. Reduzimos, no dia seguinte, as duas horas de filme a três minutos de reportagem. E uma semana bem pesada, sem tirar nem por, sobre a colocação de uma hipótese, a hipótese converteu-se em alinhamento de jornal televisivo e posteriormente numa troca sentida de mensagens. Humanos em fase de construção, construindo-se.  

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