Não me digas o que estou a fazer. Eu não quero saber *

10.8.12
Crónicas marcianas. O chefe de redacção não deve esperar mais do que crónicas marcianas quando manda um jornalista vestir o capote de extra-terrestre e o teletransporta para a areia da praia onde um rapaz tinha morrido afogado ontem. A notícia já tinha sido dada, lamenta-se profundamente o óbito e deve-se, depois da informação estar dada, preservar e respeitar o anonimato e a dor da família que acabou de ser abalroada pela tragédia.
Nunca irei compreender a doença que atinge as pessoas que teimam em caminhar sobre notícias tristes, que pisam os fracos, que esfregam as mãos e nem as chegam a sujar na tinta das primeiras impressões, e que a seguir mergulham no estio como se a notícia do afogamento de um adolescente fosse apenas o conjunto das letras de um título funesto.
Crónicas marcianas. O extra-terrestre tem um gravador com sensor de lágrimas e manda tiros certeiros em nome de mais um paragrafozinho. A máquina fotográfica anda à procura do cadáver e só tem ordem para baixar a lente quando conseguir colocar na mesma moldura pele, lençol e padiola.
Nunca irei perceber a curiosidade da corrida para dizer que há morte em Marte.
Nas Crónicas Marcianas, de 1950, Ray Bradbury introduziu o livro de contos com uma citação do realizador Federico Fellini: "não me digam o que estou a fazer. Eu não quero saber*". Dias há em que o jornalismo dos outros me faz querer ir embora de vez do meu jornalismo. Mas não me digam o que está a acontecer à minha profissão. Eu não quero saber. Há-de ser uma questão de tempo até que todos saibam que os marcianos não existem.

Sem comentários:

Enviar um comentário

AddThis