Pré-publicação de "A viagem da Camisola", no regresso do jornal O Serzedo

22.11.12
Se eu não tivesse lido a nota introdutória do último livro publicado em vida pelo José Saramago, se o Arménio não fosse o primeiro a dizer sim, se o editor de desporto da SIC se tivesse esquecido de mim, a camisola do Serzedo nunca teria chegado aos relvados do campeonato da Europa, nem estas linhas teriam começado desta forma.

Esta história começou em Portugal e acabou na Ucrânia. Não teve qualquer passagem pela Hungria, mas é pela Hungria que a vou começar a contar. Em 1951 morreu um importante escritor húngaro em Siofók, uma cidade do Sul do país. Antes de ter sido escritor e antes de ter sido uma personalidade importante , Frigyes Karinthy, o defunto destas linhas, antes da aclamação pública e da fama, foi jornalista. Karinthy foi casado com uma actriz, primeiro, e com uma psiquiatra, depois, nenhum dos casórios deu certo, por este ou por aquele motivo, tendo ele procurado refúgio na escrita e aí encontrado, entre as letras, o matrimónio perfeito. Em 1929, Frigyes Karinthy escreveu e editou o livro "Chains" - socorro-me da edição inglesa, desconheço se existe uma edição portuguesa - que podemos livremente traduzir por elos, correntes, cadeias. No livro, o escritor húngaro traz ao mundo a teoria dos seis graus de separação, segundo a qual existem apenas seis passos a separarem duas pessoas no mundo, sejam elas quem forem, estejam elas onde estiverem. A teoria foi mais tarde comprovada por cientistas norte-americanos. E com isto saio da Hungria.

É uma teoria reconfortante. Nunca nos deixa demasiado longe de ninguém, nem mesmo na madrugada da partida para a Ucrânia, na solidão de um quarto de hotel em Lisboa, a escassos quilómetros do aeroporto e a poucas horas do embarque. O encontro dos jornalistas, editores, directores e repórteres de imagem da SIC foi marcado para as quatro. Já passa da uma da manhã, adormecer é um risco elevado, posso não acordar a tempo. A RTP está a recuperar um filme qualquer do Wesley Snipes ou do Schwarzenegger. Fico com eles até à hora do duche, depois desço, chamo um táxi, entro no aeroporto com a pontualidade de um relógio da Liga dos Campeões.
E daí a nada estamos a sobrevoar Espanha, rumo a Munique. A camisola do Serzedo começou esta jornada no café do clube - o Zé passou-me para as mãos o saco de papel que o senhor Lucas lá tinha deixado - passou uma noite em Miramar, foi de carro até ao Porto e foi do Porto a Lisboa de Expresso por causa da greve dos comboios desse domingo. Agora está dentro de uma mochila preta, no compartimento da cabine, por cima da minha cabeça, entre um livro do Eduardo Mendoza e os meus apontamentos da selecção nacional. A viagem teve escalas em Munique e em Viena.
A camisola só entrou no estádio ao terceiro dia na Ucrânia, em Lviv, na manhã do jogo entre Portugal e a Dinamarca. A camisola foi fotografada no relvado e no banco de suplentes, exactamente no lugar destinado ao Paulo Bento. E falta mais de uma semana para a camisola do Serzedo chegar às mãos do Robert Pirès. Aqui, e como em tanta outras ocasiões, o destino não depende de mim. Não está nas minhas mãos.
Estávamos no dia 13 de Junho. A vitória tardia sobre a Dinamarca, achada naquela monumental simulação do Silvestre Varela, encaminhou o apuramento. O banho de bola à Holanda vez o resto. O regresso da equipa escolhida pela SIC para os jogos com direitos de transmissão tinha mais um obstáculo, a República Checa. A camisola do Serzedo também. Cristiano Ronaldo resolveu o problema nas calmas, e lá fomos nós outra vez.

Este ano o S.João estragado foi um mal menor. Bem pior foram os penaltis e os noventa minutos ligado à máquina, contra a Espanha. Que nervosismo. Que sofrimento. As palavras mais banais demonstram os sentimentos mais puros. Tenho o dia 23 de Junho de 2012 atravessado. E sei que nunca vou deixar de o ter, como ainda hoje não deixei de ter atravessado o dia 23 de Junho de 1984, quando a França passou por cima dos dois golões do Jordão , atirou Portugal para fora da final em cima da hora do prolongamento e deixou este miúdo de dez anos a chorar no S.João da Tapada. Um pranto! Rogo por um decreto-lei que impeça Portugal de jogar na véspera do S.João.
Aterrámos em Donetsk três dias antes da meia-final com a Espanha. A camisola do Serzedo, sem o frio na barriga do primeiro voo, aproveitou melhor a viagem e desta vez chegou sem vincos ou encorrilhas.
É altura de sacar o trunfo dos seis graus de separação. Um coisa leva à outra, tudo acontece por questões de proximidade, seja a distância entre os factos e as pessoas de quinhentos metros ou de cinco mil quilómetros. O meu factor de proximidade preferido é a língua. Não tem de ser a língua nativa, pode ser outra língua qualquer, desde que os intervenientes no diálogo percebam o código e dele tirem partido. Assim foi: faltam duas horas e meia para a primeira meia-final do Euro-2012. É uma boa altura para levar a camisola ao estádio. As portas ainda não foram abertas ao público. As balizas sem dono, as cadeiras sem gente, o chão sem chuteiras, o campo sem vida, são um belíssimo cenário para quem nele pode entrar e tirar partido do silêncio, da paz, dos nervos e da solidão. Mas no futebol, é como dizem os adeptos do Liverpool: you'll never walk alone. Acompanha-me neste pecadilho de apreciar o estádio um comentador de uma televisão espanhola. O comentador chama-se Robert Pires. Chamo por ele. Olá Roberto! O meu porrtuguês, estou enferrujado, lá me informa. Francês que diz enferrujado com aquela naturalidade toda não tem ponta de ferrugem na língua. Tal como nós, de Serzedo, o pai da antiga estrela do Arsenal e da selecção francesa, também é do norte de Portugal. E também tem um pequeno clube na terra, do qual é adepto. Na conversa, o Robert Pires fica a saber da camisola que tenho dentro da mochila. Diz: dá cá! E pronto. Uma pose, o telefone à mão, a fotografia para memória futura e esta incrível viagem a Donetsk a acabar conforme começou, algures na entrelinhas do último livro do José Saramago publicado em vida, quando ele cita o Livro dos Itinerários, e nos diz "sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam" .





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