Nomes (1)

30.9.12
António é o nome que me acompanha ao pequeno-almoço, com António durmo e acordo, procuro nos livros, chuto a bola, com António acerto e com António me engano. António chama por mim e com o nome António chego aos lugares todos.
António é pele. Ser assim, António desta forma, muitas vezes é ficar sentado sozinho. Mas porque com ele, sozinho me levanto, pouco importam as cadeiras vazias ou o teatro sem gente. António é estrada, não é palco.
António é nome sem o qual já não sei viver e sem o qual não quero. António é uma gargalhada e António é fúria, mas António é, não parece ser.
António é casa, o meu chão, terra lavrada, a minha cela. Para bem e para o mal, António aceita que António é nome sem dono. Só não suporta filhos da puta, por mais homónimos que sejam.

Fumadores (4)

27.9.12
Na taberna, dentro da nuvem do tabaco, o Zé pediu baixa ao médico e por isso é que estava ali a jogar à sueca com o Ti Domingos, reformado, o Jorge e o Beto, desempregados.

Dos governantes, diziam, já os tinha havido honrados, inteligentes, imaculados, aldrabões, mentirosos, corruptos, desonestos, imbecis, oportunistas, impostores, mas nunca tinham tinham visto, até hoje, um que fosse tão burro como aquele que lá está agora.

Fumadores (3)

27.9.12
Putas e vinho verde  



Letal para os telhados e as paredes, o ser vivo com cigarro aceso só está legalmente autorizado a existir fora de portas.

Esta manhã, ao balcão da cafetaria, um antigo violador de mulheres, cumpridos os três anos da pena de prisão, pediu um bagaço, engoliu e bebeu mais cinco de enfiada, disposto que estava a fazer um brinde por cada agressão sexual. O Quim pedófilo, assim apodado pelo povo, mas sem haver efectivas provas de que, entrou a meio do segundo e foi com o outro até ao fim, porque homem que é homem não deixa outro homem a beber sozinho. A festanga, para além de atrair a atenção geral, despertou o bandido que há no Julito ladrão. Julito, que nunca foi apanhado a roubar, voltou a não o ser e limpou a caixa.

Como é habitual, às sete da manhã em ponto, o senhor deputado, acompanhado por duas putas, pediu meias de leite e croissants. Gostava de ir ali porque ali sentia-se em casa, isto é: não pagava. O dono esquecia a despesa porque nunca se sabe, ter a amizade de um homem do Estado, em Portugal tem mais valor do que o ouro. Uma das putas andava amantizada com o padre, que chegava todos os dias atrasado dez minutos, com um rigor bíblico na demora para não dar nas vistas. O segredo partilhado por deputado e padre era trave mestra no progresso do distrito e os dois punham-se em bicos de pés em congressos, campanhas e altares, reclamando-se referências morais e autárquicas. Às putas apresentaram-nas da primeira vez como secretária e arquitecta, calhando por acaso a profissão a cada uma deles. Boas almas, todos juntos, à pé tão cedo, a esgravatarem pelo bem comum. Ninguém precisava de saber que tinham estado alternadamente a foder em casa do abade.

O Manel cornudo, que não tinha voltado a ser o mesmo desde que enfiara três balázios no bucho da mulher, foi à cadeia e veio no espaço de quatro anitos por bom comportamento. Ficava quieto e calado, de copo na mão de manhã à noite e vice-versa. Diziam por ali até os populares que o modo calmão do homem se devia às saudades que tinha da defunta.

Estavam assim as coisas quando um anónimo entrou e pediu e um café. Pagou, recebeu o troco, despejou o pacotinho de açúcar e acendeu um cigarro que se preparou para fumar a meias com o café. Armou-se um alvoroço. Quiseram linchar o desgraçado e alguém mandou chamar a polícia. Os agentes, por acaso das amizades do deputado por questões de segurança pessoal do autarca, só deram ouvidos ao senhor doutor. O fumador, marcado no rosto por meia dúzia de sopapos, foi mandado embora a cuspir dentes e sangue com uma multa de cento e vinte euros no bolso.

Fumadores (2)

26.9.12
Hoje, à mesma hora e no mesmo lugar, mas ao contrário de ontem, o dia não trará raparigas morenas de óculos escuros. Também aqui chove, no cruzamento da rua Afonso Cordeiro com a Sousa Aroso. O avô permanece sentado. Agarrado ao Notícias pelos dois punhos, está como que ausente do mundo neste preciso instante, com os olhos agrafados à necrologia. O neto passa os dedos pela cronologia do Facebook, no telefone. Cada um cuida dos amigos conforme pode e conforme sabe.
Sem isqueiro, o neto acende o cigarro no cigarro do avô

Fumadores (1)

25.9.12
Os pêlos do nariz do avô e as duas argolas douradas enfiadas nas orelhas do neto não deviam à partida entender-se tão bem, mas ali estão eles, a fumar cigarros e a tomar café, cúmplices, como os olhares, que só agora se encontram, porque só agora arrancou o carro da morena de óculos de sol. Sem abrir a boca, o avô está a dizer ai se eu tivesse a tua idade. Igualmente mudo, o neto responde eu mesmo que tivesse a tua. Nenhum dos dois foi onde imaginou ter ido. Puxou cada um do seu cigarro assim como se a coisa tivesse acontecido.

um português ( e o irmão mais novo)

22.9.12
Em Setembro a zona baixa de Santa Maria da Feira regressa ao presente. O sonho medieval foi embora com Agosto, o verão chega hoje ao fim e muito provavelmente o orvalho desta manhã confundiu-se com as lágrimas de folhas e ramos, despedindo-se umas das outras, até para o ano. Antes que caiam, continuam a pintar de verde durante mais alguns dias o cerco ao castelo, a serpentina que a estrada faz até ele.
Um morador do lugar de Fornos, sítio escondido, vem ao castelo para encaminhar as visitas como dever ser para a freguesia, que é uma ripa de três quilómetros no mapa do município. As visitam não perdem de vista o carro dele, como quem vai atrás de uma história, curva contra curva, chegando ao destino onde dois irmãos enchem as mochilas com uma tenda, dois sacos-cama, roupas, um trem de cozinha acanhado, um pequeno computador portátil branco, duas botijinhas de gás. Um dos irmãos é o morador que subiu ao castelo para ver chegar as visitas. O mais novo está à procura de emprego.
A necessidade de um e urgência do outro pelas viagens sai para a estrada num sábado pela tardinha. Há-de ligar Portugal qualquer coisa como de Melgaço a Faro. Mil e duzentos quilómetros com ziguezagues. Sem gasolina, sem motor e sem rodas. Sem transportes públicos, sem boleias, a pé por Portugal. A frase ai a minha vida andar para trás não cabe na mochila.
Três meses passam a correr? Neste particular atrevimento de dois rapazes, por acaso não.

um português (3)

21.9.12
E tínhamos então diante de nós a prova de que os cientistas fazem evoluir o universo debaixo da saia da mãe. Quarenta ou cinquenta anos depois dos dias da cresce, a anos-luz dessa realidade, nesta sala de hospital, no presente, milhões de partículas evolutivas mais tarde, a bata branca do salva-vidas não consegue cobrir os lugares aonde o progresso ainda não conseguiu chegar. Nas pernas os mesmos chinos dois números acima, como dantes quando ainda ia crescer e a roupa tinha de durar mais do que alguns meses. No tronco uma camisa de flanela, indiferente à estação, com o mesmo problema de tamanho. À cinta um cinto furado à mão por ser demasiado grande e porque entretanto o rapaz chegou a homem sem ter engordado.
Na cabeça um bonsai cinzento, a única marca exterior aos intentos de uma mãe quando cria um filho, mas sinal de que as idas ao cabeleireiro não são fundamentais à evolução da espécie.
O senhor doutor levantou-se, pegou no microfone e falou de sangue. Na plateia, sentaram-se vários médicos, mas todos cartas mais baixas do mesmo naipe do orador. O ás estava a resolver o jogo sozinho.

Um português (2)

19.9.12
Pouco previdente, ao português acontecem episódios diários onde o acaso faz o resto e o português entra como dedos na luva na expressão figura de urso.
Convinha lembrar que as janelas com vidros espelhados, quando vistas do exterior, não são apenas espelhos, continuam logicamente a ser janelas. E ainda que o interior não seja visível, ele existe e é como Deus, não se vê, mas está lá quando é e não é preciso.
Uma rapariga, e quem viu testemunha ser muito bonita, viu-se no reflexo da janela - um espelho para ela - e foi de pôr os dedos das duas mãos ao queixo para espremer uma borbulha. Do lado de dentro, apanhados pelo tal acaso, os restantes personagens deste instante viram-se dentro de uma sala de interrogatórrios da jundiciária, onde por acaso não estavam, e testemunharam a parte inestética de uma rapariga que se julgava em privado e afinal também não estava.
Compreender-se-á que entre tinta e laca,  pó-de-arroz e rímel, baton e sombras nas pálpebras, colares e fitas para o cabelo, na cabeça de muitas raparigas de hoje em dia, pouco espaço sobre para pensar naquilo que se está a fazer quando se está em frente a uma janela. Mas não passarão estas de considerações vagas da cabeça de homem onde pouco acontece além de gradações de grisalho do tempo, ou de cabelos que emigram todos os dias para jamais voltarem. Sobra enfim espaço para pensar melhor do assunto e fazer da realidade um espelho, projectando-a a través desta janela na internet.
O português de hoje foi afinal, uma portuguesa.

Um português

19.9.12
Poucos estarão lembrados, mas dizia-se em 2003 que iria ser gasto um milhão de euros na plantação de árvores nos terrenos adjacentes ao novo estádio de futebol em Braga.  O país contraía dívidas em betão, argamassa, elevadores, relva, balneários e cadeiras ao ritmo das paixões assolapadas. E mais do que o diz que diz, escreveu-se sobre o assunto e foram publicadas notícias nos jornais. Se a totalidade do dinheiro foi ecologicamente gasta, não poderá ter certeza absoluta desse facto o cidadão comum, mas também, diga-se, o real destino do dinheiro nunca foi grande preocupação nacional, local ou pessoal. E qualquer que tenha sido o real custo da empreitada, a verdade é que as árvores lá estão florestando a obra do arquitecto e rebentando já, passados nove anos, com o asfalto do parque de estacionamento junto ás bilheteiras.
Neste 18 de Setembro de 2012, às dez horas da manhã, seis jornalistas povoam o local, à espera da abertura da porta para um treino na véspera de um jogo da Liga dos Campeões entre o Braga e o Cluj. Houve uma conferência de imprensa a seguir ao treino e no meio das perguntas e das repostas veio à conversa o facto de haver um número elevado de jogadores portugueses nas duas equipas, por um lado devido à aposta certeira do Braga em talentos nacionais, e por outro devido ao facto de o campeonato romeno ser mais pobre do que o português e de ter por aqui encontrado um mercado de segunda e terceira escolha s à medida do bolso que tem. Português para cá, português para lá, o diálogo foi-se esgotando, a conferência de imprensa chegou ao fim, jogadores, treinadores e jornalistas foram embora, as portas fecharam-se, a pedreira (nome pelo qual o estádio também é conhecido) remeteu-se ao silêncio dos animais de grande porte, voltou a ficar obra de arte sem gente dentro.
No sopé desta história ficam as piscinas. O projecto existe e saiu do papel, levantou-se inclusivamente do chão. Não passou disso. É uma caixa cinzenta de betão armado, sem portas nem janelas, sem água nem piscina. Estava então a meia dúzia de jornalistas à espera do treino de futebol quando um português por ali passou, encostou o ombro esquerdo ao esqueleto da piscina e mijou contra o muro. Enquanto ele fez, fez-se um minuto de silêncio. Não morreu ninguém. Aliás, Portugal continua vivinho da Silva. Vai passando por nós de geração em geração.

O entardecer em Ablaut

6.9.12
Qualquer micro-pesquisa no google explica que Ablaut tem qualquer coisa a ver com as variações vocais das línguas indo-europeias. Ablaut, traduzindo de alemão para português, será qualquer coisa como reduzir o som. John Le Carré dedica um segundo do livro "Um Espião Perfeito" a esta teoria de Ablaut, sendo ela abafada antes depois pelas 647 páginas do resto da história.
Ablaut, assim o entendam, pode ser o nome de um lugar qualquer, um lugar que desparece por momentos se os cães ladram ou se carros dos vizinhos chegam a casa, mas que regressa num instante.
Uma varanda, meia-noite, vinte e um graus e meia-lua. A paz não faz barulho.

O entardecer em Ablaut

6.9.12
Qualquer micro-pesquisa no google explica que Ablaut tem qualquer coisa a ver com as variações vocais das línguas indo-europeias. Ablaut, traduzindo de alemão para português, será qualquer coisa como reduzir o som. John Le Carré dedica um segundo do livro "Um Espião Perfeito" a esta teoria, sendo ela abafada antes depois pelas 647 páginas do resto da história.
Esta noite Ablaut pode ser o nome de um lugar qualquer, um lugar que desparece por momentos se os cães ladram ou se carros dos vizinhos chegam a casa, mas que volta num instante. Uma varanda, meia-noite, vinte e um graus e meia-lua. A paz não faz barulho.

O entardecer em Ablaut

6.9.12
Qualquer micro-pesquisa no google explica que Ablaut tem qualquer coisa a ver com as variações vocais das línguas indo-europeias. Ablaut, traduzidindo de alemão para português, será qualquer coisa como reduzir o som. John Le Carré dedica um segundo do livro "Um Espião Perfeito" a esta teoria, sendo ela abafada antes depois pelas 676 páginas do resto da história.
Esta noite Ablaut pode ser o nome de um lugar qualquer, um lugar que desparece por momentos se os cães ladram ou se carros dos vizinhos chegam a casa, mas que volta num instante. Uma varanda, meia-noite, vinte e um graus e meia-lua. A paz não faz barulho.

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