O QUE OS OUVIDOS FAZEM ENQUANTO OS OLHOS LÊEM

25.12.13
Engraçado, como os ouvidos pouca ou nenhuma atenção prestam à leitura. Os olhos escolheram a Visão para ler, mas os ouvidos não, os ouvidos, contrafeitos, obrigados à mesma cabeça, ficaram mais atentos à SIC Notícias. Escutaram a palavra expectável. No mesmíssimo segundo, os olhos encontraram a mesmíssima palavra numa página de citações. A cabeça pasmou-se.

IMAGINAR

20.12.13























Pobre fotografia, mora debaixo da ponte, perto dos garimpeiros do peixe, essa pedra preciosa do palato. Pedala, homem, pedala, o céu está carregado de medalhas de ouro e o rio é deste retrato de família.  

RAIOS DE SOL DENTRO DE UM LIVRO

20.12.13























Um homem morreu em Tel Aviv enquanto a bicicleta chegou ao areal de Miramar. De pronto o escritor semeou dois supeitos na narrativa, um homem e uma mulher. Vale todas as viagens e mil voltas a França e ao mundo a Necrópole, de Santiago Gamboa, um colombiano escolhido a dedos pelas palavras para nos dizer coisas.

AS PERNAS ANDAM A CONTAR COISAS

20.12.13

Hoje os pés levantaram-se descalços pelas nove horas. No outono a madeira é mais fria, mesmo a madeira morta e cortada às postas, aos pés da cama, no cemitério de árvores, o chão da minha casa. Os pés tiveram, pois, frio. E os pés em greve são um grande transtorno para o corpo, pelo que o conselho de administração do corpo, presidido pela cabeça, logo mandou os braços à gaveta das meias buscar meias e à sapateira buscar botas, porque os olhos tinham espreitado pela janela. Lá fora, chovia. Com os pés calçados, as pernas perceberam a mensagem. Começaram a andar do quarto para um lado, do quarto para o outro, até que saíram pela porta da entrada, apanharam o elevador, os braços escolheram o piso da garagem, as pernas desceram ao alto, a porta do elevador abriu sozinha, as pernas saíram, levaram o homem com elas, sentaram o homem no carro e homem conduziu o carro para o emprego. 
Uma vez que a boca pouco se lembrou de comer em casa, estava o homem no emprego quando as pernas tiveram de fazer horas extra, encaminhadas pelos pés até um café de toldos vermelhas e esplanada recolhida. Convém lembrar que chovia, por isso os pés calçaram botas e meias grossas. O homem comeu um panado em pão, bebeu uma coca-cola, pensou que os sabores não chegam às pernas, muitos menos aos pés.  Não obstante, e lamentando o azar dos membros, o homem comeu e bebeu tudo sem remorsos. Para rematar a fome, pediu um café. Fumou um cigarro de novo em cima das pernas, por sua vez em cima dos pés, esquerdo, direito, esquerdo, direito, esquerdo, direito, e por  aí fora, sobre pedras siamesas. 

FOTOGRAFIAS NOVAS

19.12.13
4

Appelbaum parou um rio. Suspendeu no ar meia dúzia de folhas castanhas. As folhas são leves e isso até um homem frágil consegue fazer. Extraordinário é um homem sem músculos ter mais força do que um caudal. Appelbaum teve. Parou um rio com a ponta do dedo indicador. Um homem com um telefone nas mãos pode mudar o mundo e mandar mensagens à natureza, cuidado mãe, cresci para ti.
A força entusiasma.  O entusiasmo apressa os tempos. A fotografia saiu desfocada. Appelbaum voltou a tocar no ecrã, na segunda vez experimentou com o anelar, como se sabe o mais fraco dos dedos, capaz de casar, de fazer alianças e de desistir de tudo só por estar farto.  Certos dedos e certas pessoas não gostam de repetições. Isso é mau, porque o calendário manda os dias acontecerem uns a seguir aos outros.
Appelbaum voltou a parar um rio, suspendeu outro bando de folhas no ar. Não mexeu nas árvores. As árvores não vão a lado nenhum.

Feliz com o resultado da imagem, beijou o ecrã do telefone. Com os lábios descobriu um botão mágico, capaz de tirar as cores à fotografia. Para além de ter parado um rio, suspendido as folhas, ignorado o porte das árvores, Appelbaum  retratou Lipstadt a preto e branco, que é a melhor maneira de mandar calar as cores. 

O AMOR É MUITO A AUSÊNCIA

17.12.13
Phosphorescent - Song For Zula

Ainda no sábado o suplemento cultural do Expresso recordava os males d´amor de Matthew Houck, a sua dor posta ao serviço de um dos melhores discos deste ano. O crítico escreveu que o cantor talvez não volte a gravar tão bem o mesmo tema, para não ter de passar pelo mesmo trauma. A ser assim, no futuro ganha-se um homem são, perde-se um disco perfeito. O futuro é que sabe.

Arctic Monkeys - Fireside

17.12.13

Fotografias novas (5)

17.12.13
Lipstadt não vem no mapa da Alemanha.  Talvez Appelbaum não exista, não tenha chegado a nascer há quarenta anos.  Talvez não estivesse a fazer o pino, com as mãos da parteira à espera da cabeça dele, ao fundo da mãe, no bloco operatório. Ou então, o que sabem os mapas de salas de partos. Appelbaum nasceu no hospital de Lipstadt no dia  25 de Abril de 1974, há registos oficiais. Lipstadt deveria vir no mapa da Alemanha, porque Appelbaum tem nacionalidade alemã e passaporte, um reisepass vermelho da bundesrepublik.
Appelbaum adora fotografias onde a sua cara não está. Na fotografia do seu passaporte não mora mais ninguém além da sua cabeça, cortada pelo pescoço como um troféu de caça. Ficou com os olhos assustados e assimétricos. Ficou com o cabelo espantado, espantado. Em pé. Ficou com as orelhas maiores. Culpou o fotógrafo, uma que vez não tinha levado aquela cara de parvo para dentro do estúdio.
O mapa é grande, despreza os pequenos, Lipstadt teria entrado se tivesse outro tamanho, assim como é, vila pequena e solteira, caiu do desenho. Mas não caiu do mundo. Lipstadt existe e Appelbaum também. Tem fotografias que o provam.

Fotografias novas (7)

16.12.13
Por mero acaso Appelbaum levantou os olhos. Estava dentro da sala de jantar de um restaurante italiano na beira-rio de Lipstadt. Encontrou um jogo de futebol perto do tecto. O televisor cantava gooooooolooooo!
Um jogador marcou um golo com o pé e festejou, fez um coração com as mãos. Se tivesse marcado o golo de cabeça teria feito o mesmo gesto? Appelbaum pensa que não, Appelbaum pensa que não, está seguro, a cabeça atrapalha muito o coração porque pensa. Por seu lado, o coração, que não pensa, dá muitas dores de cabeça às pessoas espontâneas. Appelbaum nunca tem dores de cabeça. Coração tem. Usado como novo, mas tem. Amou poucos quilómetros e foi logo trocado por um amor com mais cavalos, arrebatador.
Portanto: o jogador fez um coração com as mãos porque marcou um golo com o pé direito, tivesse marcado com o pé esquerdo, a coisa dava para o torto, o coração ficava como a Torre de Pisa, atractivo por ser estranho.
O amor precisa de um pé direito, pensa Appelbaum, que agora baixa os olhos e examina o sapato, e o bate no chão, como quem procura par de salto alto.
À volta, nem um calcanhar sentado num tacão para consolar as vistas. Appelbaum desligou o radar, a sala de jantar estava cheia de botas da tropa e chuteiras, é engraçado como o calçado dos homens tem nomes de mulher.

ALFAVILLE

6.12.13
diário de um carro preto

Alfa Romeo 147 1.6 TS
2 - A mulher do senhor condutor acordou-me cedo. Adormeci atrás do carro dela e ela teve de me arrumar da frente para poder ir trabalhar. Foi. O senhor condutor veio ter comigo à garagem ao meio-dia. Trazia o filho num cestinho. Acomodou o pequenito no meu banco traseiro, só depois me abraçou o volante e me pôs a andar. Levaram-me às compras em lojas de carros. Senti-me importante. Corei.

ALFAVILLE

4.12.13
diário de um carro preto


Alfa Romeo 147 1.6 TS
1- Vou ser operado esta tarde em Paramos. Tenho um problema eléctrico no comando do vidro esquerdo e sofro de mau contacto: no ar condicionado e no airbag do condutor. O condutor, por falar nele, está comigo há quatro meses e já me levou ao médico de clínica geral umas duas ou três vezes. É bom rapaz, preocupa-se comigo. Hoje vai deixar-me num especialista em electricidade. Ando também com uns problemas de pele, mas isso é pouco urgente, pode ficar para mais tarde e com pouca tinta se resolve. Tenho doze anos, mas toda a gente me dá menos de metade. Sou um Alfa Romeo 147. Vou ao electricista. 

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4.12.13


Beirut - Nantes

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