Um acontecimento

29.6.14

Em 1931 os vagabundos de Trafalgar Square liam. Eram livros do género de Buffalo Bill, mas não havia entre eles quem não os lesse. E até os trocavam, ao fim do dia, à porta da igreja de St. Martins, onde dormiriam, entre as "visitas" da polícia. Pela manhã barbeavam-se na fonte da praça.
George Orwell está com eles e com alguns deles há-de partir para Kent. Vão para a apanha do lúpulo. Estes diários metem dentro de um livro a parte da vida de Orwell que ficou escrita entre Agosto de 1931 e Novembro de 1948.

O empate é o pior resultado do mundo

25.6.14

Romário passa a vida dizendo que Pelé calado é um poeta. Romário calado também é um poeta, excepto quando abre a boca para dizer que Pelé calado é um poeta.
Sorte a do Brasil que golo não se mete com poema, mas com a cauda do poema, que mora junto de meias e caneleiras, nas pernas dos jogadores de futebol. Aí o Brasil é o verso que dá certo. Rima com fartura, é pontapé de bicicleta, gol de letra, estádio cheio de texto bonito, o Brasil que escreve a sua história com os pés.
Morreu está fazendo trinta e quatro anos o Pelé das palavras do Brasil. Nelson Rodrigues, camisa dez da crónica e das ideias do jogo. Nelson foi o jornalista que começou a escrever sem salário, o que não é legal (legal de legal no Brasil e legal de legal em Portugal), mas deu certo, mas que não deve fazer escola, excepto na metáfora.
Transpondo a ideia e clarificando o propósito: Portugal nessa copa é jornalista sem salário, a conta bancária está no zero. Portugal pode continuar no zero ou pode arregaçar a manga e correr a tempo de emendar o parágrafo e rescrever a história, que nesse ponto tem tudo para dar errado, mas que com a palavra certa no sítio certo, a vírgula a marcar o ritmo de jogo, pode começar por ganhar detalhe a detalhe, linha após linha, e quando der por ele, Portugal pode já estar no epílogo mais feliz do mundo.
E como faz isso? Faz como disse o Nelson Rodrigues. Assume esse ponto de partida: “o empate é o pior resultado do mundo”. Faz assumindo essa ideia e tomando a seguinte como segundo passo: “O torcedor sente-se roubado no dinheiro da entrada e inclinado a chamar os 22 jogadores, o juiz e os bandeirinhas de vigaristas. Acresce o seguinte: — de todos os empates o mais exasperante é o de 0 x 0. Essa virgindade desagradável e irredutível do escore já humilhava o público e, ao mesmo tempo, o enfurecia”.
Nelson escreveu tudo isso no conto “O craque sem idade”, do livro “À sombra das chuteiras imortais”. Assumindo assim o jogo, Portugal nem tem de ir ao conto seguinte, com esse maravilhoso título: “A conveniência de ser cobarde”. Porque aí, mesmo perdendo, se todo o mundo vir que a equipa quis ser equipa ganhando, não há problema não. A derrota será bem mais honesta do que um empate com medo de perder. Aí não tem cobardia que se ponha a olhar a linha de um título, a segunda linha mais bela do mundo, a seguir à linha de gol.

Os grandes escritores e o futebol

25.6.14
Jorge Luís Borges (a mão deve tremer ao escrever este nome), argentino, escritor de primeira linha da literatura mundial, e da última, e de todos os intervalos entre o princípio e fim de um texto, por mais argentino que fosse, e por mais incrível que isso possa parecer vindo de um argentino, vivia muito bem fora de jogo. Para ele o futebol era isto: “O futebol é popular porque a estupidez é popular”. 
E mais do que isto, era isto: ” onze jogadores contra onze, correndo atrás de uma bola, não são especialmente atractivos”. Mais disse, Jorge Luís Borges, a seu tempo (1889-1986): “a ideia de que haja um que perca e outro que ganhe parece-me essencialmente desagradável. Há uma ideia de supremacia, de poder, que me parece horrível”. Torna-se impossível comprrender como é que um homem que tanto sabia de dizer coisas, tão pouco tenha percebido o jogo: “que estranho que nunca se tenha atirado á cra da Inglaterra o facto de ela ter enchido o mundo com jogos estúpidos, desportos puramente físicos com o futebol. O futebol é um dos maiores crimes da Inglaterra”.
Borges morreu quinze dias antes de Maradona ter levado a Argentina à conquista do título de campeã do mundo.

Adiante. Dizem as pesquisas que quando jovem Camilo José Cela (a mão deve tremer ao escrever este nome) jogava à bola e o fazia na fascinante posição de extremo esquerdo, o último da táctica, e quantas vezes, em quantas equipas, em quantas gerações, a táctica, quando chegava ao ponta esquerda já se tinha entretanto diluído pelos outros dez e já não era mais táctica, era o que sobrava do espartilho, o talento e a fantasia, enfim, o futebol. 
Camilo José Cela, espanhol entre 1916 e 2002, morreu antes de poder ter visto a Espanha triunfar sobre o mundo com a bola nos pés. Mas viveu a tempo de ter escrito “Onze Contos de Futebol”, um livro do tamanho de dois cartões amarelos. Muito me atrai, no meio desse melhor onze do mundo, a peculiar situação do FC Waldetrudis Pucará: ” equipa que, levando até às últimas consequências as tácticas defensivas, jogava com dois guarda-redes. Teógenes, guarda-redes direito, e Teogonio, guarda-redes esquerdo. Valerá a pena, a quem puder, ir ao livro e perguntar pela vida destes dois entre os postes. 
Uma outra frase, de um outro contro: “é raro, mãs não impossível, a morte estar escondida bandeirola de canto”. E outra, de outro: “é lei de jogadores: é tão mau rebentar como ficar a milhas”.
Um dos meus ídolos, que ainda os vou tendo, um chileno muito especial, morreu em 2003. Foi Roberto Bolaño (a mão deve tremer ao escrever este nome), que tinha nascido em 1953. Escreveu os livros que me foram aproximando da escrita e escreveu, em alguma parte de “Putas Assassinas”, no conto Buba, o que aí vem: “eu, por exemplo, e como todo o mundo sabe, sou extremo esquerdo. Quando jogava na América Latina (no Chile e depois na Argentina) marcava uma média de dez golos por época. Aqui (Barcelona), pelo contrário, a minha estreia foi asquerosa, lesionaram-me no terceiro jogo, tiveram de operar-me os ligamentos e a minh recuperação, que em teoria ia ser rápida, foi lenta e trabalhosa, para que é que a vou contar. Senti-me mais só de que lua. Essa é que é a verdade”.
Em Inglaterra (1903-1950), George Orwell (a mão deve tremer ao escrever este nome), punha, nos seus últimos anos na Terra, o dedo no negócio do futebol, quando muito quente estava ainda o cadáver da Alemanha nazi:”na Inglaterra e nos EUA o desporto tornou-se uma atividade de pesados investimentos financeiros, capaz de atrair enormes multidões e de despertar paixões selvagens, e essa infecção alastrou-se de país em país. E foi nos desportos mais violentos e combativos, o futebol e o boxe, que ela mais se espalhou. Não há dúvida de que tudo isto está ligado à ascensão do nacionalismo, ou seja, este lunático hábito moderno de alguém se identificar com grandes estruturas de poder, e passar a enxergar todas as coisas do ponto de vista do prestígio competitivo”.
Orwell chegou a dizer que “futebol é a continuação da guerra por outros meios. É uma imitação da guerra”.

E de Portugal, isto, terminado por agora a ronda, mas prometendo voltar ao assunto um destes. António Lobo Antunes (a mão deve tremer ao escrever este nome), que felizmente ainda não chegou ao fim da data, e que nasceu em 1942, disse ao jornal espanhol El País, numa entrevista que foi replicada pelo MaisFutebol, de onde retiro estes últimos trechos, maravilhas sobre Messi: “nunca servi para outra coisa. Não sirvo para a vida prática. Nem sequer tenho computador. Escrevo à mão, porque é como bordar. Gosto do cheiro do papel, gosto dessa coisa artesanal que é escrever, do desenho das letras. Há três ou quatro coisas importantes na vida: os livros, os amigos, as mulheres e Messi. Vi-o há pouco tempo, pela televisão, no Mundial de Clubes. Quem me dera escrever como Messi joga futebol. A bola parece amá-lo”.

MEMÓRIAS DA CATALUNHA

3.6.14
O avião, lápis que desenha viagens no céu, não risca nada em terra.
Barcelona está lá em baixo, feita à mão, e eu, que já não a via desde aqueles dois voos entre Lisboa e Lviv, e entre Lisboa e Donetsk, durante os quais  li a Cidade dos Prodígios, do Eduardo Mendoza, voltei a sentir que a tinha ali debaixo dos pés, à espera de acontecer.
Em Barcelona eu podia ser casa. Eu podia fazer como as árvores, furar o chão, ser a raiz de mim próprio. Há-de ser do chão, pó do meu pó. Sei que é assim. Nunca o saberei explicar em melhores modos.
Barcelona come o que eu comeria todos os dias. Bebe o mesmo malte, as mesmas uvas. E até o sol que ela tem é da cor do meu. Entretanto, tiremos a cabeça do ar, aterremos de barriga no asfalto de El Prat. As rodas pousam e deixam o resto do trabalho às pernas. Andemos do avião para fora, a vida que eu não tive está do outro lado da porta, ao fundo das escadas.
Entro na cidade como estivesse a entrar nas minhas próprias veias, a viajar no meu sangue e nascer do nada, como da outra vez, em 1974, era março e era Vila Nova de Gaia.
Encontrei na segunda noite a música que mexe com as raízes da minha pessoa. E as palavras que a música canta. Dancei, saltei, devo ter semeado lágrimas em frente ao palco. Concertei-me.







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