Deve ser isto o futuro

28.11.14
Porto - Um pouco à frente das três da tarde, na estação de São Bento, teclados e bateria acompanharam a viagem e uma voz guiou o comboio.
Deve ser isto o futuro, a quatro ou cinco quilómetros de 1993. E do pavilhão das Antas.





Aqui dentro

25.11.14


Aqui dentro a ponte tem nervos de aço e a terra aguenta com ela.
O rio desce, a vida sobe, aqui dentro. As casas moram de mão dada, o mar está sempre à janela e os barcos, como antigamente, namoram ao muro. Aqui dentro as pessoas mandam tudo para o caralho, mas também abraçam. E choram, choram das duas lágrimas, das boas e das outras. Aqui dentro, com uma língua muito torta, diz-se tudo muito direitinho.

escreve a lápis

24.11.14
Escreve a lápis. A frase corre mal? Apaga, reescreve. Ou melhor: fala a lápis. Se a  boca fugir para a verdade, e se a verdade for um lugar inoportuno, resolve com a língua, ela é um bom apagador. Melhor ainda: pensa a lápis. Sem perguntar porquê.


O sim, o não e o silêncio. Ou talvez as editoras sejam como as crianças e não falem com desconhecidos

19.11.14
Com este sol e outras chuvas escrevi um livro sem dor de burro, fiz uma prova limpa do princípio ao fim, sabendo de onde tinha saído e muito consciente de até onde tinha pernas para ir. E fui.
Entreguei a prova da minha prova às editoras. Deixei ficar com elas uma radiografia do livro e mandei também o corpo inteiro do bicho. Concluí a minha missão, não voltei a pensar no assunto.
Talvez tenham passado nove meses sobre o tempo em que acabei de o fazer. E nada. Nem uma vírgula, quanto mais três tristes letras a dizer não ou a dizer sim. Custará assim tanto a dispensa uma palavra por parte de quem faz vida com as maratonas das cabeças dos outros? (A bem da verdade, houve uma que disse sim. E eu a essa ainda não disse que sim, nem que não, mas sempre disse alguma coisa).


Um dia vamos ser este homem e esta mulher

19.11.14
Um dia vamos ser este homem e esta mulher. Um dia não vamos ter ninguém para onde ir.
Que nesse dia, quando tiver ser, o mar esteja igual às cordas do violino e as nuvens sejam o resto. E o fim aconteça igual ao sol, longe do mundo, que seja o que tem de ser, poente, fim.

o discurso da bola enquanto mulher objecto

19.11.14


Voltei a ser enganada esta noite. Muito me agradou o convite para um ménage à trois com o Messi e o Ronaldo, mas quando cheguei ao lugar marcado vi logo que não era bem assim.
Messi é um argentino  mudo, só fala comigo. O que ele me enrola. E eu vou na cantiga dele até que me apercebo que ele só me está a usar para chegar ao golo e dizer a todos que é muito bom de bola. Como ele vem sempre em pezinhos de  lã eu caio na cantiga e vou com ele até ao fim do mundo, ao fundo da baliza. O Ronaldo é um português que me bate com mais força, mas que bate tão bem, que quanto mais ele me bate, mais eu acho que ele mais gosta de mim.
Como podia eu, bola perdida de amores pelo carinho de um e pelo suor do outro, negar o convite dos dois para uma noite romântica, e a três, em Manchester. Não podia. Por isso, fui.

Correu mal. Muito mal. Logo no início, correu mal. Os bandidos não só não vieram sozinhos como cada um trouxe um autocarro cheio de amigos, nem quero imaginar a minha cara no parque de estacionamento de Old Trafford, devo ter ficado com cara de bola ao poste no último minuto da final Liga dos Campeões com o jogo empatado a zero. Pois fiquei. Mas calei-me, não disse nada, cumpri o meu papel de oxigénio do jogo, subi ao relvado, entreguei-me aos dois ao mesmo tempo.
E os dois nada, nada, não me fizeram nada, não conseguiram. Dizia o Messi: isto nunca me tinha acontecido. Dizia o Ronaldo: a mim também não. Para piorar a coisa, os dois decidiram ir embora a meio do encontro, fingindo que tinham ido à casa de banho. Nunca mais apareceram. Deixaram-me em campo com uns rapazes que não sabem muito bem o que fazer comigo.
Também não é bem assim. O Quaresma sabe, quando quer sabe. E eu, só de imaginar o Paulo Bento, o Scolari e o Queiroz cheios de ciúmes, deixei o Quaresma fazer gato sapato de mim. Como a noite estava perdida e estava ainda tirei a virgindade a um miúdo que veio de França só para ver a bola.

O habitante

4.11.14
Só agora me apercebo que o habitante entrou na minha vida no dia em que o meu pai fez 65 anos. 22 de Novembro de 2013. Dei por ele a caminho da estação de comboios, ao passar por uma cama de cartão vazia, um cobertor e uma garrafa de água. Agarrei naquele homem que não existia naquele lugar e trouxe-o comigo. Baptizei-o, sentei-o no lugar vago que havia ao meu lado, comecei a puxar por ele, inventei-o, mas ainda não acabei de o parir. Chamei-lhe Appelbaum. Mora comigo. Foge de mim. Regressa. Ando a escrevê-lo num telefone.



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